Pode ser que seja da estação, que a chuva misturada com vento cinzento faça levantar uma série de depressões. Dizem que a crise é global e afecta a todos, e que se calhar, o melhor é fazermos a nossa encomendazinha de PROZAC para os tempos que hão-de vir.
Por enquanto, e ainda lúcidos, apercebemo-nos que algo não anda nada bem. Pode ser que estejamos a sentir o primeiro ventinho daquela que será uma terrivel tempestade, ou pior, se calhar andamos a fumar dentro do paul de pólvora e ninguém nos avisou. Por enquanto estamos em onda “so far so good”, mas não sabemos a que distancia andamos nem quanto tempo falta para o quê, mas sente-se que algo está para acontecer.
No artigo copy/paste que posto a seguir, também já se pode cheirar esse " je ne sais quoi" em aromas raiva-contida.
A ver como será quando chegar o Inverno…
Como há-de ser de outra maneira quando o país está a empobrecer mais depressa que o costume, já estava antes da "crise", e acelerou com a "crise"? O empobrecimento nas suas várias formas, desde as mais drásticas como o desemprego até às menos visíveis como a dívida, corrói a qualidade de vida e dissolve toda a esperança. E pior ainda, para quem discute no espaço público, com o empobrecimento vai muita da independência e da liberdade, já tão escassas antes, agora ainda mais débeis. Escrever para uma sociedade que está essencialmente a ver se não perde o pouco que tem, que está virada para a sobrevivência aos seus vários níveis e que está disposta a trocar independência e complacência pelo emprego, pelas benesses que ainda tem, torna muita crítica incómoda. E, no fundo, quem pode julgar moralmente de alto este retorno sobre si mesmo, de quem tem pouco e não quer ficar com nada? Não, não são tempos fáceis estes em que o espaço público se encolhe e por isso fica mais miasmático, menos saudável, mais claustrofóbico, mais conflituoso nas minudências e menos atento às grandes questões vistas com impotência, menos sensível aos valores da liberdade e do espírito crítico. São bons tempos para os governos autoritários e para o populismo e maus para a liberdade, a independência e autonomia do espírito.
O nível de vociferação cresce, mas o do espírito crítico esmorece. As pessoas implodem, protestam, dizem coisas apocalípticas sobre "eles" e retornam a um quotidiano cansativo, pouco feliz e aborrecido. Como podia ser de outra maneira, se a maioria das pessoas vivem "vidas de merda", tão longe dos seus sonhos e dos seus desejos? Imagino uma repartição pública às cinco da tarde, coada pelo néon e cheia de papéis, já quase de noite, com trinta pessoas aborrecidas até ao limite a pensarem só na hora de irem para casa, sabendo, as mulheres mais do que os homens, que vão trocar uma repartição por outra. Sabendo que, antes de chegarem a casa, têm um longo caminho de transportes públicos, maus, lentos, sujos, nalguns casos perigosos, ou uma fila de carros que não anda e uma rádio que repete ao infinito as mesmas notícias. Imagino uma escola em que uma professora de meia idade entra na aula e olha para trinta bárbaros vestidos de igual, dizendo grosserias e obscenidades, entre telemóveis ainda vivos e fios dos MP3, entre roupa "de marca" comprada na feira do Relógio e cabelos em bico com gel, os rapazes a pensarem no wrestling e no skate e as raparigas vestidas para matar a pensarem nas fotos que vão colocar em trajes menores no Hi5. Que olhar pode ter a professora, já com várias aulas em cima, para uma audiência desatenta que a última coisa que quer saber é o que é uma raiz quadrada ou um soneto, numa sala húmida e pouco iluminada, perdida num subúrbio policiado? Imagino o que seja o desespero das contas feitas ao fim da tarde do velho comerciante na Baixa, numa loja perdida numa rua secundária, que vive do seu trabalho e de um seu "empregado", com meia dúzia de artigos comprados já nos supermercados e centros comerciais, que revende aos vizinhos que "há muitos anos" lhe compram umas coisas, mas cada vez menos. Ele olha para as cartas das Finanças que de repente começam a chegar em Novembro, com a urgência do fisco em arrancar todos os centavos em dívida, a pedir mais dinheiro, todas a ameaçar de penhoras e confiscos, e não sabe o que fazer. Não chega, o "negócio" não chega e oculta da sua velha esposa a situação da "loja" que vai ter que fechar, o cataclismo da sua vida, o atestado da sua inutilidade. Imagino o que seja chegar às seis ou sete da manhã às obras numa carrinha que andou a recolher trabalhadores nas esquinas ou nos postos da gasolina, casacos grossos contra o frio, entre um ucraniano sorumbático e violento, meio a dormir, e outro trabalhador com gripe que mesmo assim tem que vir trabalhar, esperando um dia miserável às ordens de um capataz, de um subempreiteiro de outro subempreiteiro, para, ao fim da tarde, após discussões sobre o pagamento a que falta sempre qualquer coisa combinada, se ir para o café beber cerveja e ver futebol e chegar-se a casa embrutecido e rude.
Ao crepúsculo tudo se ensimesma, à chuva tudo se complica, milhões de pessoas perderam a esperança de viver melhor, têm medo de viver pior, e acantonam-se sobre si próprias. Olhem com atenção para o friso de faces num autocarro, com as janelas embaciadas, e procurem um traço sequer de felicidade. Nem Diógenes com um holofote da II Guerra Mundial seria capaz de encontrar um sorriso.
Por sobre tudo isto há um murmúrio de vozes a que ninguém liga quase nada. São as vozes dos jornais, da política, as nossas vozes, que contam muito menos do que imaginamos. São pouco mais do que um murmúrio, visto de baixo como alheio e hostil - no fundo somos "nós" que governamos - e visto de cima como decisivo e importante. Vale muito pouco para a vida comum da maioria das pessoas e valerá muito menos se se afundar em irrelevâncias, se engolir tudo o que o Governo quer que engula, se se tornar numa patrulha política do pensamento - será que fui racista ao falar do ucraniano? Será que posso descrever os "jovens" assim? Será que estou a favor da evasão fiscal das pequenas e médias empresas? Será que tenho que fazer a rábula da "esperança"? Há de facto muito pouca paciência para estas patrulhas do pensamento que proliferam em tempos de crise.
Vale a pena? A resposta podia ser a pessoana do lugar-comum, mas mesmo assim vale. Em tempos de crise, mais do que nunca é preciso não desistir de olhar as coisas com um olhar crítico, até porque proliferam nesta altura as piores das "soluções", os piores dos aproveitamentos, e cresce a mediocridade. E nós estamos a ser governados tão mediocremente que todo o pessimismo é pouco. Os tempos estão difíceis, mas os que nos vêm outra vez com o Marx deles, e com o Estado e com o "diálogo", estão-nos a vender produtos tão tóxicos como o subprime. Parece uma Alemanha de Weimar cansada e ainda mais triste.
(Versão do Público de 22 de Novembro de 2008.)
1 comment:
Junte-se este artigo ao da Clara Ferreira Alves (no Expresso, aqui também colocado) e temos, pelo menos, um "evangelho" dos dias que nos consomem...
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